Saturday, October 20, 2018

ABORDAGEM AO PACIENTE VÍTIMA DE LESÕES ELÉTRICAS

Abordagem ao paciente vítima de lesões elétricas

Por: Renan Torres e Isabela Moreira

INTRODUÇÃO:
Embora as lesões por choque representem uma parcela pequena nos serviços de emergência, apresentam uma morbidade extremamente elevada para as vítimas e um grande custo para a sociedade¹. Os índices de mortalidade são altos: cerca de 30% a 40% dos acidentes são fatais, com estimativas de aproximadamente 1.000 mortes por ano nos EUA. Nesse contexto, as principais vítimas são do sexo masculino, seguido pelas crianças (em especial menores de 5 anos)².
De acordo com o DATASUS, embora o choque elétrico figure como importante causa de mortes evitáveis no país, nos últimos 12 anos foram registradas 13.776 internações com 379 óbitos e mais 15.418 mortes imediatas decorrentes de acidentes relativos à exposição a corrente elétrica. O espectro das lesões varia desde de acidentes domésticos com tomadas até acidentes por relâmpagos com abundante carga elétrica³ .


OBJETIVO:
O objetivo deste estudo foi avaliar a fisiopatologia, as manifestações clínicas e a conduta nas situações de choque elétrico e raio nas emergências a fim de se obter o correto manejo dessas vítimas.

METODOLOGIA:
O presente estudo trata-se de uma revisão bibliográfica de artigos a partir da consulta nas bases de dados MEDLINE, LILACS e SCIELO. Foram utilizados trabalhos publicados em inglês e português dos períodos de 1995 a 2014. Além dos artigos selecionados a partir da busca nas bases de dados, também foram incluídos capítulos de livros baseados em estudos originais.

FISIOPATOLOGIA:
Alguns fatores são determinantes no que diz respeito a gênese das manifestações após o acidente, tal como: o tipo de corrente, a voltagem, a resistência dos tecidos, o caminho percorrido pela corrente e a duração do contato. Dentre os tecidos e órgãos, a resistência a passagem de corrente elétrica em ordem crescente encontra-se: nervos, sangue, músculo, pele, tendão, tecido adiposo e ossos¹.
Em relação as lesões por choque elétrico os principais mecanismos fisiopatológicos aceitos são: 

  1. Conversão de energia elétrica em energia térmica durante a passagem da corrente pelos tecidos; 
  2. Alterações a nível celular; 
  3. Lesões traumáticas secundárias a contusões, contrações musculares vigorosas e quedas; 
  4. Liberação intensa de catecolaminas².


Em comparação, as injúrias por raios elétricos apresentam características singulares.
A maneira como um raio atinge a vítima influencia diretamente na gravidade das lesões e é dessa forma como são classificadas: 

  1. O contato direto representa o tipo mais grave, ocorre quando o raio atinge a vítima sem intermédio de outros objetos; 
  2. Quando ocorre por intermédio de outro objeto é considerado por alguns autores como o tipo mais comum. Acontece quando o raio atinge a vítima através de um objeto próximo, como através de uma árvore ou uma barra metálica; 
  3. O contato por meio do solo, em geral, atinge maior número de vítimas. Nessa circunstância a energia elétrica é transmitida após o raio atingir o solo; 
  4. O contato por explosão ou combustão ocorre por meio da expansão atmosférica de gases decorrente da combustão².


MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS:
Os traumas elétricos variam desde de lesões superficiais até disfunção de múltiplos órgãos e sistemas, que comumente evolui para óbito⁴ ⁵.
As queimaduras são as complicações mais frequentes, sendo a pele o órgão com mais lesão nesses casos. As queimaduras elétricas variam de primeiro a terceiro grau; as mais graves geralmente são indolores, podem apresentar coloração amarelo acinzentada e frequentemente estão associadas à presença de necrose central. A lesão superficial não é um bom preditor de envolvimento dos tecidos internos, pois ocorrem danos importantes nas estruturas profundas, com graus variados de necrose. O grau de lesão externa pode subestimar a lesão interna, especialmente nos casos de lesões por baixa-voltagem. Nesta situação, queimaduras superficiais pouco significativas podem coexistir com coagulação muscular maciça e necrose, além de comprometimento de outros órgãos e vísceras. As lesões por raios apresentam baixo percentual de queimaduras profundas já que a duração do contato é muito curta e o raio atravessa a superfície cutânea sendo descarregado no solo. O aparecimento das figuras de Lichtenberg poucas horas após o acidente é patognomônico do choque por raio. Estas lesões têm aspecto de ramificações dendríticas que desaparecem rapidamente, sem necessidade de tratamento direcionado².


Figura 1: Figuras de Lichtenberg, patognomônicas do choque por raio. (Fonte: http://grupocienciascriminais.blogspot.com/2014/09/medicinalegal-figura-de-lichtenberg-as.html)

A cabeça é uma região importante nas lesões por choque de alta voltagem. Os pacientes podem apresentar perfuração da membrana timpânica, catarata, queimaduras na face e pescoço, lesões da medula espinhal e traumatismo cranioencefálico. A catarata é uma importante complicação, com progressão de cerca de 70% dos casos e necessidade de cirurgia ocular. Nas lesões por raio, também são relatadas outras complicações como lesões da córnea, uveíte, hemorragia vítrea, atrofia do nervo ótico, descolamento de retina. Fraturas de crânio e lesão da coluna cervical são as complicações mais comuns nas lesões por raio em virtude da energia cinética e das quedas associadas².
Cerca 15% dos pacientes desenvolvem arritmias, geralmente benignas até 48 horas após a lesão. As alterações eletrocardiográficas mais registradas são taquicardia sinusal, elevação transitória do segmento ST, prolongamento reversível do segmento QT, bloqueios de ramo e bloqueios atrioventriculares de 1° e 2° graus. Os pacientes atingidos por correntes que atravessam de um braço a outro possuem grandes chances de desenvolverem fibrilação ventricular (FV). Morte súbita secundária a FV é mais comum em pacientes vítimas de choques de baixa voltagem com corrente alternada, enquanto que assistolia está geralmente associada a choques de alta voltagem. O principal motivo de morte após acidentes por raio é o desenvolvimento de parada cardiorrespiratória (PCR). As vítimas de raio também podem apresentar contusão cardíaca².
Em relação aos danos a nível de sistema nervoso, os pacientes podem apresentar perda transitória da consciência, confusão mental e déficits de memória. Nos casos em que ocorrem traumatismos cranianos não é incomum o aparecimento de depressão respiratória e evolução para o coma. O aparecimento de fraqueza e parestesias pode ocorrer poucas horas após a lesão e comprometimento dos membros inferiores é mais comum do que dos membros superiores. Lesões neurológicas tardias podem se apresentar dias ou anos após a lesão. A complicação neurológica mais frequente nas vítimas de raios é o desenvolvimento de uma paralisia temporária chamada keraunoparalisia (70% dos pacientes vítimas de lesões graves). Acomete preferencialmente os membros inferiores e a sua fisiopatologia pode ser explicada por espasmo vascular, disfunção sensorial e disfunção autonômica. Em geral, esse quadro reverte-se em algumas horas, no entanto, alguns pacientes podem desenvolver paresias ou parestesias permanentes.
A nível renal os pacientes podem apresentar mioglobinúria (resultante de rabdomiólise) e hemoglobinúria (proveniente de hemácias lisadas). Além disso, podem desenvolver insuficiência renal, pré-renal e necrose tubular aguda².
Nos ossos as queimaduras periosteais, destruição da matriz óssea e osteonecrose são algumas das complicações relacionadas com a elevada resistência dos ossos à passagem de correntes elétricas. As síndromes compartimentais podem surgir nas primeiras 48h após o choque¹ ².
O comprometimento do centro respiratório e contusão pulmonar por lesão traumática (com hemoptise e hemorragias) são as manifestações clínicas mais frequentes no que tange o aparelho respiratório.

MANEJO GERAL DO PACIENTE:
O uso dos protocolos do Advanced Cardiology Life Support (ACLS) para PCR e do Advanced Trauma Life Support (ATLS) para o trauma estão recomendados nas vítimas de lesões elétricas. As medididas inciais mais importantes são: imobilização cervical, controle das vias aéreas, manobras de reanimação e desfibrilação (quando indicada). A obtenção de via aérea avançada pode ser dificultada em pacientes com queimaduras da face ou pescoço pelo desenvolvimento de extenso edema local. Intubação orotraqueal ou nasotraqueal precoce deve ser realizada nos pacientes com hipóxia grave, queimaduras faciais ou orais, queimaduras por inalação, perda da consciência ou desconforto respiratório. A administração de fluidos está indicada para combater e corrigir as perdas para o terceiro espaço. As vítimas de choque por raio devem ser tratadas como vítimas de lesão por esmagamento. Os fluidos devem ser administrados em velocidade suficiente para manter a diurese em 0,5 a 1,0 mL/kg/h (na ausência de hemoglobinúria/mioglobinúria) e em 1,0 a 1,5 mL/kg/h (se houver hemoglobinúria/mioglobinúria). O uso de furosemida e de manitol, assim como a alcalinização da urina, são medidas alternativas para aumentar a depuração de mioglobina¹ ² .
Os principais exames laboratoriais a serem solicitados são. Hemograma completo; Eletrólitos (sódio, potássio, ureia, creatinina); EAS (densidade, pH, hematúria e análise de mioglobina); Mioglobina sérica; Gasometria arterial; Enzimas (CPK, CKMB); Enzimas hepáticas, pancreáticas e coagulograma; Eletrocardiograma seriado.
Os exames de imagem preconizados são: Radiografia de tórax; radiografia da coluna cervical; radiografia de pelve; TC/RNM de crânio; Eco Doppler cardiograma; cintilografia miocárdica².

MANEJO ESPECÍFICO DO PACIENTE:
As queimaduras são tratadas de modo similar a queimaduras térmicas. A abordagem consiste em fasciotomias, escarotomias, reconstrução extensa da pele e amputações, por isso é recomendado que estes pacientes sejam acompanhados por serviços especializados. O manejo inicial das queimaduras no serviço de urgência consiste em profilaxia antitetânica adequada, manutenção da volemia do paciente e se indicado instituição de profilaxia com antibióticos. Já nos casos de Síndrome compartimental, é importante ter em mente um alto índice de suspeição através de exames seriados e medidas da pressão intracompartimental (quando superior a 30 mmHg).

CONCLUSÃO:
As injúrias causadas por choques elétricos e raios não apresentam grande proporção na admissão nas urgências e emergências, porém são extremamente graves e necessitam de manejo rápido e adequado. Diante disso, e a partir do conhecimento da patogênese do trauma elétrico e das principais manifestações clínicas, a abordagem deve ser baseada no ACLS/ATLS de maneira precoce, a fim de se obter o melhor prognóstico para o paciente.

REFERÊNCIAS:
1) KOBERNICK, Marc. Electrical injuries: pathophysiology and emergency management. Annals of emergency medicine, v. 11, n. 11, p. 633-638, 1982.
2) MAGARÃO, Rodrigo Viana Quintas; GUIMARÃES, Helio Penna; LOPES, Renato Delascio. Lesões por choque elétrico e por raios. Revista da Sociedade Brasileira de, v. 9, n. 4, p. 288-93, 2011.
3) TUMA JUNIOR, Paulo et al. Queimaduras elétricas dos membros superiores. Rev. Hosp. Clin. Fac. Med. Univ. Säo Paulo, v. 50, n. supl, p. 13-6, 1995.
4) DE SOUZA, Aline Lobato et al. Queimadura elétrica no Hospital Federal do Andaraí de 1997 a 2010: análise de 152 casos. Rev Bras Queimaduras, v. 11, n. 2, p. 80-4, 2012.
5) DE CARVALHO, Cíntia Mara et al. Estudo clínico epidemiológico de vítimas de queimaduras elétricas nos últimos 10 anos. Rev Bras Queimaduras, v. 11, n. 4, p. 230-3, 2012.
6) SANFORD, Arthur; GAMELLI, Richard L. Lightning and thermal injuries. In: Handbook of clinical neurology. Elsevier, 2014. p. 981-986.
7) GOLDENBERG, Dov C. et al. Comprometimento pulmonar em trauma eletrico: relato de caso. Rev Hosp Clin Fac Med Sao Paulo, v. 51, n. 1, p. 15-7, 1996.
8) LEONARDI, Dilmar Francisco; LAPORTE, Gustavo Andreazza; TOSTES, Francisco Moreira. Amputação de membro por queimadura elétrica de alta voltagem. Rev Bras Queimaduras, v. 10, n. 1, p. 27-9, 2011