Tuesday, November 14, 2017

ANAFILAXIA - ABORDAGEM NO DEPARTAMENTO DE EMERGÊNCIA

 Anna Laura Hermes Rocha Vilardo e Yasmin Sab 

INTRODUÇÃO:

            Anafilaxia representa uma das condições clínicas de emergência médica que exigem maior agilidade e atenção por parte da equipe de atendimento. É uma patologia marcada pela imprevisibilidade de aparecimento e potencial de  gravidade.
Caracteriza-se por manifestações sistêmicas graves, que geralmente decorrem de uma reação de hiperssensibilidade tipo I, ou seja, mediada pela imunoglobulina E (IgE), após a exposição a antígenos em indivíduo previamente sensibilizado a esses. O termo reação anafilactoide é uma reação de hipersensibilidade não mediada por IgE. Anafilaxia refere-se a ambos os mecanismos fisiopatológicos relacionados, e não relacionados a mediação com IgE sem possibilidade de distinção clinicamente.
É marcada por início abrupto, evolução rápida e risco de morte. A intensidade da reação e a sensibilidade individual determinam a repercussão clínica observada em cada paciente. O choque anafilático corresponde a manifestação mais grave da anafilaxia.

EPIDEMIOLOGIA:

Presume-se que vários casos de anafilaxia não são diagnosticados ou relatados, o que leva à subestimação da sua incidência. Alguns estudos mostram que de todos os casos de reação alérgica, a anafilaxia representou 1% dos casos de cada 4/1000 admissões por ano. A incidência aumentou na última década principalmente na população jovens.

São principais causadores de anafilaxia: alimentos, medicamentos (antibióticos, insulina, heparina, protamina, bloqueadores neuromusculares, anestésicos, sulfas e derivados, anti-inflamatórios, opiáceos e vacinas), veneno de insetos (principalmente abelhas e vespas), hemoderivados, imunoterapia, contato com látex, uso de contraste, etc. Entre as crianças o principal fator alérgico são alimentos (amendoim, leite, nozes), entre os adultos o principal responsável são os fármacos (anti-inflamatórios e antibióticos) seguidos por alimentos e envenenamentos. Cabe ressaltar que os agentes causadores de anafilaxia são muito variáveis de acordo com a região e que no Brasil existem poucos estudos, o que leva a uma dificuldade de caracterização adequada dessa condição.
            São pacientes de risco para o desenvolvimento de anafilaxia: crianças, gestantes, adolescentes e idosos. Outros fatores de risco são: asma, doença cardiovascular pré-existente, distúrbios dos mastócitos (mastocitose), tratamento concomitante com betabloqueadores ou inibidores de enzima de conversão da angiotensina, níveis séricos elevados de triptase, reação alérgica grave anterior, tipo de picada de inseto (abelhas conferem mais risco).

FISIOPATOLOGIA:

            As reações anafiláticas em geral ocorrem como conseqüência de sensibilização alergênica, com formação de anticorpos específicos da classe IgE, correspondendo a uma reação de hipersensibilidade do tipo I. Ocorre uma exposição inicial ao alérgeno, induzindo à produção dessa classe de imunoglobulina, a qual se liga aos receptores presentes nos basófilos e mastócitos. Havendo uma exposição subsequente para esse mesmo alérgeno ocorre a ligação entre o antígeno e IgE previamente ligada às células citadas. Desencadeia-se assim uma série de reações as quais liberam mediadores pró inflamatórios pré formados como por exemplo histamina, triptase, quimase, heparina citocinas e mediadores derivados de fosfolípides da membrana celular (prostaglandinas e leucotrienos).
Os mediadores citados, principalmente a histamina, se ligam aos seus respectivos receptores (no caso da histamina, aos receptores H1 e H2), presentes em diversas estruturas como a musculatura lisa, endotélio vascular, glândulas e terminações nervosas. Desse modo ocorre a resposta inflamatória exacerbada, marcada pela vasodilatação, aumento da permeabilidade vascular, broncoconstrição, hipersecreção glandular e ativação do sistema nervoso autônomo, levando a sintomatologia observada na anafilaxia. Cabe ressaltar, no entanto, que a intensidade da liberação destas substâncias e a sensibilidade individual determinam a repercussão clínica do fenômeno. O quadro 1 resume a ação dos principais mediadores envolvidos na reação anafilática e seus efeitos clínicos.



                                                                          Fonte: Anafilaxia: guia prático - Rev. bras. alerg. imunopatol. - Vol. 29, Nº 6, 2006.

            A anafilaxia por IgE pode se subdividir em dois momentos: a reação aguda, que ocorre logo após a exposição aos alérgenos e decorre da secreção de mediadores pré-formados; e a fase tardia que ocorre horas depois, mesmo sem que haja reexposição ao alérgeno, sendo marcada pela participação de outros tipos celulares como neutrófilos, macrófagos e linfócitos havendo produção de outros mediadores. Pode estar presente ainda a fase crônica na qual após a exposição prolongada ou repetitiva ao alérgeno ocorrem mudanças estruturais no local afetado.
           O choque anafilático por sua vez é um tipo de choque distributivo desencadeado a partir da liberação dos mediadores inflamatórios os quais induzem vasodilatação, alteração na permeabilidade dos vasos, associada a extravasamento de plasma, levando a redução do débito cardíaco, hipotensão e hipoperfusão. Tais alterações fisiopatológicas levam a sintomatologia observada no choque.

APRESENTAÇÃO CLÍNICA:

Podem ocorrer diversas manifestações clínicas envolvendo diferentes sistemas como pele, mucosa oral, sistema nervoso, trato respiratório, gastrointestinal e cardiovascular no quadro de anafilaxia. As manifestações podem ser isoladas ou concomitantes.

─ Tecido cutâneo: Eritema, prurido, urticária, rash morbiliforme, ereção pilar, palidez, sudorese, cianose labial e de extremidades.
─ Orofaringe: Coceira em lábios, língua e palato, angioedema, gosto metálico.
─  Olhos: Prurido, lacrimejamento, eritema e edema periocular, eritema conjuntival. 
─ Sistema Respiratório: Prurido nasal, rinorréia, congestão nasal e espirros. Pode estar presente também, estridor respiratório, dispnéia, sibilância, tosse, rouquidão, disfonia.
─ Aparelho Cardiovascular: Hipotensão, sensação de fraqueza, taquicardia, vertigem, síncope, dor no peito, arritmia (bradi ou taqui). Há risco de parada cardíaca.
─ Sistema Gastrointestinal: Disfagia, náusea, dor abdominal em cólica, vômitos, diarréia.
─ Sistema Neurológico: Ansiedade, sensação de morte iminente, convulsões, cefaléia, alterações da visão, perda do controle esfincteriano e confusão mental.

Sistema Ginecológico: contrações uterinas, levando a cólicas em mulheres e gestantes.
Sinais e sintomas de alerta de gravidade: progressão sintomática rápida, esforço respiratório, tosse persistente, estridor laríngeo, vômitos persistentes, hipotensão, arritmias, dor torácica e síncope.
            Os sintomas aparecem de minutos a horas após o contato com o agente desencadeante. Quanto mais rápido o aparecimento dos sintomas, pior a gravidade. O quadro clínico pode se apresentar de duas formas: unifásico, o qual se caracteriza pela presença dos sintomas de uma única vez (somente a reação aguda ocorre); ou bifásico, onde há o aparecimento dos sintomas em dois tempos distintos, o primeiro quadro mais precocemente e o reaparecimento do quadro podendo ocorrer cerca de 8-10h após o contato (ocorre a reação aguda seguida da reação tardia- podendo ser em até 72h).
            O choque anafilático por sua vez inicia-se com um padrão hiperdinâmico, marcado pela taquicardia seguida de um padrão hipocinético e hipovolêmico, associado à alteração do transporte do oxigênio. As características clínicas são multissistêmicas e típicas da presença de choque, com destaque para taquicardia, hipotensão, aumento do tempo de enchimento capilar, extremidades frias sudoreicas, com cianose, livedo reticular associado a presença das placas urticariformes, alterações neurológicas, taquipneia, desconforto respiratório, uso de musculatura acessória da respiração, hipoxemia grave, entre outros sinais e sintomas. 

DIAGNÓSTICO:

            É essencialmente clínico, sendo dispensável a realização de exames complementares.
Os critérios diagnósticos para a anafilaxia estão descritos na tabela 2 a seguir:

Tabela 2: Critérios diagnósticos da anafilaxia
Critério 1:
 Início agudo (minutos a poucas horas) com envolvimento de pele, mucosas ou ambos
 E,  no mínimo, um dos seguintes:
Comprometimento respiratório OU hipotensão OU sintomas associados com disfunção orgânica.
Critério 2:
Pelo menos dois ou mais dos seguintes sintomas minutos a horas depois do contato com provável alérgeno:
        Envolvimento de pele ou mucosas
        Comprometimento respiratório
        Hipotensão ou sintomas associados à disfunção orgânica
        Sintomas gastrointestinais persistentes.
Critério 3:
Diminuição de pressão arterial depois de contato com alérgeno conhecido para o paciente:  
        Crianças: pressão sistólica menor 70 mmHg de 1 mês até um ano; menor que 70 mmHg +2 x idade de 1 a 10 anos de idade.
        Adultos: pressão sistólica menor que 90 mmHg ou redução > 30% da sua pressão basal.
Fonte: Adaptado de: Medicina de Emergência- abordagem prática. Martins et al, 2017; 12ª edição .

São diagnósticos diferenciais no quadro de anafilaxia:
     Urticária
     Asma
     Angioedema
     Inalação de corpo estranho
     Síndrome respiratória aguda
     Epiglotite
     Acidente vascular encefálico
     Síndrome carcinoide
     Síncope
     Reações transfusionais
     Hiperventilação com ataque de pânico
     Reações à vancomicina
     Leucemias de mastócitos
     Arritmias
     Mastocitose sistêmica
     Síndrome coronariana aguda
     Choques (cardiogênico, hipovolêmico)

TRATAMENTO:

            É imprescindível o diagnóstico precoce do quadro de anafilaxia dado a rápida evolução característica da doença.
            Assim que realizado o diagnóstico de anafilaxia deve-se proceder de acordo com os seguintes princípios de atendimento:
1. Remover o agente causal se ainda houver exposição
2. Avaliação das vias aéreas :
  1. Intubação orotraqueal imediata se estridor respiratório ou sinais de insuficiência respiratória.
  2. Se edema de face ou orofaringe não há indicação imediata de IOT, porém o médico deve estar preparado para uma possível necessidade.
  3. Orienta-se deixar material para IOT e para cricotireoidotomia de urgência preparados.
  4. Para todos orienta-se ofertar oxigênio suplementar a 100%
3.  Avaliação circulatória:
  1. Se manifestações cardiovasculares, principalmente hipotensão: realizar 2 acessos venosos calibrosos para ressuscitação volêmica com cristalóide 30mL/kg na primeira hora de atendimento.
  2. Se em parada cardiorrespiratória: iniciar manobras de ressuscitação, seguindo as diretrizes recomendadas. 
4. Iniciar imediatamente epinefrina intramuscular
  1. É a base da terapêutica da anafilaxia
  2. Deve ser aplicada intramuscular, no músculo vasto lateral da coxa preferencialmente.
  3. Dose: 0,3-0,5 mg podendo ser repetida em intervalos de 5- 15  minutos no caso de persistência sintomática.
  4. Uso de torniquetes e aplicação no local afetado não são recomendados.
5. Manter paciente em posição supina e com membros inferiores elevados.
6. Monitorização constante do paciente e reavaliação do quadro.
  1. Melhora do quadro: Observar
  2. Se piora do quadro ou inalteração após ressuscitação volêmica e três dosagens de adrenalina IM:  Paciente encontra-se em choque anafilático.
-       Iniciar adrenalina por via endovenosa em bomba de infusão contínua 4μg/mL
-       Mantendo refratariedade ao tratamento : iniciar infusão de vasopressina ou azul de metileno
OBS: Pacientes em uso de beta-bloquedores não respondem à epinefrina, sendo necessário a utilização de glucagon (1- 5mg IV em 5 min) concomitante para que estes respondam ao tratamento.

7. Tratamento de algumas manifestações clínicas da anafilaxia:
  1. Sintomas cutâneos: é indicado o uso de anti-histamínicos

-       Bloqueador H1: difenidramina 25 - 50mg associados a 100 mL de soro fisiológico (máximo de 400 mg/24h)
E
-       Bloqueador H2: ranitidina 50 mg IV associado a 20 mL de soro glicosado 5% (máximo de 150 mg/24h)
-       Manter após estabilização clínica por via oral por 5 dias.
      b.    Broncoespasmo: pode ser necessária a inalação com beta-2-agonista inalatório.
     c. Corticosteróides: indicados para evitar o aparecimento da reação bifásica;  Metilprednisona 40-60mg IV de 12/12h. Após estabilização clínica utilizar prednisona 40-60mg VO por 5 dias.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
PRADO, E.; SILVA, M., Anafilaxia e reações alérgicas  - J Pediatr (Rio J) 1999;75(Supl.2):s259-s67. Disponível em: http://jped.com.br/conteudo/99-75-S259/port_print.htm
MORAIS-ALMEIDA, M., et al; Anaphylaxis: from notification and knowledge to management - Rev Port Imunoalergologia 2007; 15 (1): 19-41. Disponível em : http://www.spaic.pt/client_files/rpia_artigos/anafilaxia-%E2%80%93-da-notificacao-e-reconhecimento-a-abordagem-terapeutica.pdf
SABIATALLO, F., et al., Anafilaxia: reconhecimento e abordagem. Uma revisão para o clínico. Rev Bras Clin Med. São Paulo, 2012 jul-ago;10(4):329-33. Disponível em:   http://www.sbcm.org.br/revistas/RBCM/RBCM-2012-04.pdf#page=64
BERND, L.A., et al., Anafilaxia: guia prático para o manejo. Rev. bras. alerg. imunopatol. – Vol. 29, Nº 6, 2006 . Disponível em: http://www.asbai.org.br/revistas/Vol296/ART_6_06_Anafilaxia_guia_pratico.pdf
MARTINS, Herlon Saraiva et al. Medicina de emergências: abordagem prática. 2017.