INTRODUÇÃO:
Anafilaxia representa uma das condições
clínicas de emergência médica que exigem maior agilidade e atenção por parte da
equipe de atendimento. É uma patologia marcada pela imprevisibilidade de
aparecimento e potencial de gravidade.
Caracteriza-se por manifestações sistêmicas graves, que geralmente
decorrem de uma reação de hiperssensibilidade tipo I, ou seja, mediada pela
imunoglobulina E (IgE), após a exposição a antígenos em indivíduo previamente
sensibilizado a esses. O termo reação anafilactoide é uma reação de
hipersensibilidade não mediada por IgE. Anafilaxia refere-se a ambos os
mecanismos fisiopatológicos relacionados, e não relacionados a mediação com IgE
sem possibilidade de distinção clinicamente.
É marcada por início abrupto, evolução rápida e risco de morte. A
intensidade da reação e a sensibilidade individual determinam a repercussão
clínica observada em cada paciente. O choque anafilático corresponde a
manifestação mais grave da anafilaxia.
EPIDEMIOLOGIA:
Presume-se que vários casos de anafilaxia não são diagnosticados ou
relatados, o que leva à subestimação da sua incidência. Alguns estudos mostram
que de todos os casos de reação alérgica, a anafilaxia representou 1% dos casos
de cada 4/1000 admissões por ano. A incidência aumentou na última década principalmente
na população jovens.
São principais causadores de anafilaxia: alimentos, medicamentos
(antibióticos, insulina, heparina, protamina, bloqueadores neuromusculares,
anestésicos, sulfas e derivados, anti-inflamatórios, opiáceos e vacinas),
veneno de insetos (principalmente abelhas e vespas), hemoderivados,
imunoterapia, contato com látex, uso de contraste, etc. Entre as crianças o
principal fator alérgico são alimentos (amendoim, leite, nozes), entre os
adultos o principal responsável são os fármacos (anti-inflamatórios e
antibióticos) seguidos por alimentos e envenenamentos. Cabe ressaltar que os
agentes causadores de anafilaxia são muito variáveis de acordo com a região e
que no Brasil existem poucos estudos, o que leva a uma dificuldade de
caracterização adequada dessa condição.
São pacientes de risco para o
desenvolvimento de anafilaxia: crianças, gestantes, adolescentes e idosos.
Outros fatores de risco são: asma, doença cardiovascular pré-existente,
distúrbios dos mastócitos (mastocitose), tratamento concomitante com
betabloqueadores ou inibidores de enzima de conversão da angiotensina, níveis
séricos elevados de triptase, reação alérgica grave anterior, tipo de picada de
inseto (abelhas conferem mais risco).
FISIOPATOLOGIA:
As reações anafiláticas em geral ocorrem como
conseqüência de sensibilização alergênica, com formação de anticorpos
específicos da classe IgE, correspondendo a uma reação de hipersensibilidade do
tipo I. Ocorre uma exposição inicial ao alérgeno, induzindo à produção dessa
classe de imunoglobulina, a qual se liga aos receptores presentes nos basófilos
e mastócitos. Havendo uma exposição subsequente para esse mesmo alérgeno ocorre
a ligação entre o antígeno e IgE previamente ligada às células citadas.
Desencadeia-se assim uma série de reações as quais liberam mediadores pró
inflamatórios pré formados como por exemplo histamina, triptase, quimase,
heparina citocinas e mediadores derivados de fosfolípides da membrana celular
(prostaglandinas e leucotrienos).
Os mediadores citados, principalmente a histamina, se ligam aos seus
respectivos receptores (no caso da histamina, aos receptores H1 e H2),
presentes em diversas estruturas como a musculatura lisa, endotélio vascular,
glândulas e terminações nervosas. Desse modo ocorre a resposta inflamatória exacerbada, marcada pela vasodilatação,
aumento da permeabilidade vascular, broncoconstrição, hipersecreção glandular e
ativação do sistema nervoso autônomo, levando a sintomatologia observada na
anafilaxia. Cabe ressaltar, no entanto, que a intensidade da liberação destas
substâncias e a sensibilidade individual determinam a repercussão clínica do
fenômeno. O quadro 1 resume a ação dos principais mediadores envolvidos na
reação anafilática e seus efeitos clínicos.
Fonte: Anafilaxia: guia prático - Rev. bras. alerg. imunopatol. - Vol. 29, Nº 6, 2006.
A anafilaxia por IgE pode se subdividir em dois momentos: a reação aguda, que ocorre logo após a exposição aos alérgenos e decorre da secreção de mediadores pré-formados; e a fase tardia que ocorre horas depois, mesmo sem que haja reexposição ao alérgeno, sendo marcada pela participação de outros tipos celulares como neutrófilos, macrófagos e linfócitos havendo produção de outros mediadores. Pode estar presente ainda a fase crônica na qual após a exposição prolongada ou repetitiva ao alérgeno ocorrem mudanças estruturais no local afetado.
O choque anafilático por sua vez é um tipo de choque distributivo desencadeado a partir da liberação dos mediadores inflamatórios os quais induzem vasodilatação, alteração na permeabilidade dos vasos, associada a extravasamento de plasma, levando a redução do débito cardíaco, hipotensão e hipoperfusão. Tais alterações fisiopatológicas levam a sintomatologia observada no choque.
APRESENTAÇÃO CLÍNICA:
Podem ocorrer diversas manifestações
clínicas envolvendo diferentes sistemas como pele, mucosa oral, sistema
nervoso, trato respiratório, gastrointestinal e cardiovascular no quadro de
anafilaxia. As manifestações podem ser isoladas ou concomitantes.
─ Tecido cutâneo: Eritema, prurido, urticária, rash morbiliforme,
ereção pilar, palidez, sudorese, cianose labial e de extremidades.
─ Orofaringe: Coceira em lábios, língua e palato, angioedema,
gosto metálico.
─ Olhos:
Prurido, lacrimejamento,
eritema e edema periocular, eritema conjuntival.
─ Sistema Respiratório: Prurido nasal, rinorréia, congestão nasal e
espirros. Pode estar presente também, estridor respiratório, dispnéia,
sibilância, tosse, rouquidão, disfonia.
─ Aparelho Cardiovascular: Hipotensão, sensação de fraqueza, taquicardia,
vertigem, síncope, dor no peito, arritmia (bradi ou taqui). Há risco de parada
cardíaca.
─ Sistema Gastrointestinal: Disfagia, náusea, dor abdominal em cólica,
vômitos, diarréia.
─ Sistema Neurológico: Ansiedade, sensação de morte iminente,
convulsões, cefaléia, alterações da visão, perda do controle esfincteriano e
confusão mental.
─ Sistema Ginecológico: contrações uterinas, levando a cólicas em
mulheres e gestantes.
─Sinais e sintomas de alerta de gravidade: progressão sintomática
rápida, esforço respiratório, tosse persistente, estridor laríngeo, vômitos
persistentes, hipotensão, arritmias, dor torácica e síncope.
Os sintomas aparecem de minutos a
horas após o contato com o agente desencadeante. Quanto mais rápido o
aparecimento dos sintomas, pior a gravidade. O quadro clínico pode se
apresentar de duas formas: unifásico, o qual se caracteriza pela presença dos
sintomas de uma única vez (somente a reação aguda ocorre); ou bifásico, onde há
o aparecimento dos sintomas em dois tempos distintos, o primeiro quadro mais
precocemente e o reaparecimento do quadro podendo ocorrer cerca de 8-10h após o
contato (ocorre a reação aguda seguida da reação tardia- podendo ser em até
72h).
O choque anafilático por sua vez inicia-se
com um padrão hiperdinâmico, marcado pela taquicardia seguida de um padrão
hipocinético e hipovolêmico, associado à alteração do transporte do oxigênio.
As características clínicas são multissistêmicas e típicas da presença de
choque, com destaque para taquicardia, hipotensão, aumento do tempo de
enchimento capilar, extremidades frias sudoreicas, com cianose, livedo
reticular associado a presença das placas urticariformes, alterações
neurológicas, taquipneia, desconforto respiratório, uso de musculatura acessória da
respiração, hipoxemia grave, entre outros sinais e sintomas.
DIAGNÓSTICO:
É essencialmente clínico, sendo
dispensável a realização de exames complementares.
Os critérios
diagnósticos para a anafilaxia estão descritos na tabela 2 a seguir:
Tabela 2: Critérios
diagnósticos da anafilaxia
Critério 1:
|
Início
agudo (minutos a poucas horas) com envolvimento de pele, mucosas ou ambos
E, no mínimo, um dos seguintes:
Comprometimento respiratório OU hipotensão OU sintomas associados com disfunção orgânica.
|
Critério 2:
|
Pelo menos
dois ou mais dos seguintes sintomas minutos a horas depois do contato com
provável alérgeno:
●
Envolvimento de pele ou mucosas
●
Comprometimento respiratório
●
Hipotensão ou sintomas
associados à disfunção orgânica
●
Sintomas gastrointestinais persistentes.
|
Critério 3:
|
Diminuição de pressão arterial depois de
contato com alérgeno conhecido para o paciente:
●
Crianças: pressão
sistólica menor 70 mmHg de 1 mês
até um ano; menor que 70 mmHg +2 x
idade de 1 a 10 anos de idade.
●
Adultos: pressão
sistólica menor que 90 mmHg ou redução > 30% da sua pressão
basal.
|
Fonte: Adaptado de: Medicina de Emergência- abordagem prática. Martins
et al, 2017; 12ª edição .
São diagnósticos
diferenciais no quadro de anafilaxia:
●
Urticária
●
Asma
●
Angioedema
●
Inalação de corpo estranho
●
Síndrome respiratória aguda
●
Epiglotite
●
Acidente vascular encefálico
●
Síndrome carcinoide
●
Síncope
●
Reações transfusionais
●
Hiperventilação com ataque de
pânico
●
Reações à vancomicina
●
Leucemias de mastócitos
●
Arritmias
●
Mastocitose sistêmica
●
Síndrome coronariana aguda
●
Choques (cardiogênico,
hipovolêmico)
TRATAMENTO:
É imprescindível o diagnóstico precoce do
quadro de anafilaxia dado a rápida evolução característica da doença.
Assim que realizado o diagnóstico de
anafilaxia deve-se proceder de acordo com os seguintes princípios de
atendimento:
1. Remover o agente causal se ainda houver exposição
2. Avaliação das vias aéreas :
- Intubação orotraqueal imediata se estridor
respiratório ou sinais de insuficiência respiratória.
- Se edema de face ou orofaringe não há indicação
imediata de IOT, porém o médico deve estar preparado para uma possível
necessidade.
- Orienta-se deixar material para IOT e para
cricotireoidotomia de urgência preparados.
- Para todos orienta-se ofertar oxigênio
suplementar a 100%
3. Avaliação circulatória:
- Se manifestações cardiovasculares,
principalmente hipotensão: realizar 2 acessos venosos calibrosos para
ressuscitação volêmica com cristalóide 30mL/kg na primeira hora de
atendimento.
- Se em parada cardiorrespiratória: iniciar
manobras de ressuscitação, seguindo as diretrizes recomendadas.
4. Iniciar imediatamente epinefrina intramuscular
- É a base da terapêutica da anafilaxia
- Deve ser aplicada intramuscular, no
músculo vasto lateral da coxa preferencialmente.
- Dose: 0,3-0,5 mg podendo ser repetida em
intervalos de 5- 15 minutos no caso
de persistência sintomática.
- Uso de torniquetes e aplicação no local
afetado não são recomendados.
5. Manter paciente em posição supina e com membros inferiores elevados.
6. Monitorização constante do paciente e reavaliação do quadro.
- Melhora
do quadro: Observar
- Se piora do quadro ou inalteração após
ressuscitação volêmica e três dosagens de adrenalina IM: Paciente encontra-se em choque
anafilático.
- Iniciar adrenalina por via endovenosa em bomba
de infusão contínua 4μg/mL
- Mantendo refratariedade ao tratamento : iniciar
infusão de vasopressina ou azul de metileno
OBS: Pacientes em uso de beta-bloquedores não
respondem à epinefrina, sendo necessário a utilização de glucagon (1- 5mg IV em
5 min) concomitante para que estes respondam ao tratamento.
7. Tratamento de algumas manifestações clínicas da anafilaxia:
- Sintomas cutâneos: é indicado o uso de
anti-histamínicos
- Bloqueador H1: difenidramina 25 - 50mg
associados a 100 mL de soro fisiológico (máximo de 400 mg/24h)
E
- Bloqueador H2: ranitidina 50 mg IV associado a
20 mL de soro glicosado 5% (máximo de 150 mg/24h)
- Manter após estabilização clínica por via oral
por 5 dias.
b.
Broncoespasmo: pode ser necessária a inalação com beta-2-agonista
inalatório.
c. Corticosteróides: indicados para evitar
o aparecimento da reação bifásica; Metilprednisona 40-60mg IV de 12/12h. Após
estabilização clínica utilizar prednisona 40-60mg VO por 5 dias.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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Anafilaxia e reações alérgicas - J Pediatr (Rio J) 1999;75(Supl.2):s259-s67. Disponível em: http://jped.com.br/conteudo/99-75-S259/port_print.htm
MORAIS-ALMEIDA, M., et al; Anaphylaxis: from
notification and knowledge to management - Rev
Port Imunoalergologia 2007; 15 (1): 19-41. Disponível em : http://www.spaic.pt/client_files/rpia_artigos/anafilaxia-%E2%80%93-da-notificacao-e-reconhecimento-a-abordagem-terapeutica.pdf
SABIATALLO, F., et
al., Anafilaxia: reconhecimento e abordagem. Uma revisão para o clínico. Rev Bras Clin Med. São Paulo, 2012
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BERND, L.A., et al.,
Anafilaxia: guia prático para o manejo. Rev.
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MARTINS, Herlon Saraiva et al. Medicina de
emergências: abordagem prática. 2017.