O conceito de morte é tênue e sofre influências filosóficas, culturais e científicas mutáveis de acordo com os anos. O diagnóstico de Morte Encefálica ainda é um tabu em nossa sociedade e não é muito aceito pela população em geral e essa não aceitação da morte é um grande desafio para todos os profissionais de saúde, em especial para os médicos.de tal maneira que contrapõe conceitos éticos e dificulta o estabelecimento dos limites terapêuticos. Com os meios artificiais de manutenção da vida, a definição de morte ficou ainda mais imprecisa, dificultando o estabelecimento de limites terapêuticos, e criando dilemas éticos, o que suscitou a necessidade de se criarem parâmetros técnicos e específicos para determinar a Morte Encefálica (ME). A existência dessas determinações facilita o diagnóstico de ME e o delicado papel de comunicar e fazer a família entender o quadro, diminuindo as angústias e sofrimentos diante de “uma morte em que o coração ainda bate”, indagação mais frequente dos familiares ao serem comunicados sobre a ME.
Um estudo publicado na Revista Brasileira de Terapia Intensiva, em 2007, realizado com estudantes de medicina, demonstrou um nível baixo de conhecimento por parte dos graduandos a respeito dos protocolos de diagnóstico de ME. O que se percebe, na prática, sete anos após esse estudo, é que o tema ainda é pouco abordado nas grades curriculares das Universidades de Medicina do país, de modo que o profissional ainda tem muitas dúvidas e inseguranças para abrir um protocolo de ME, o que, em alguns casos, pode significar, inclusive, a perda da possibilidade da doação de órgãos.
A ME no Brasil tem seus conceitos baseados nas determinações da Academia Americana de Neurologia. Assim, diante de um paciente com suspeita de morte encefálica, deve-se aplicar todo o protocolo de ME, sendo ou não um potencial doador de órgãos, e os casos devem ser notificados à Secretaria de Saúde, que irá acompanhar todo o processo, dando início aos trâmites para captação de órgãos, caso seja indicado. Contudo, vale ressaltar que o diagnóstico de ME é importante não só para uma melhor captação de órgãos para realização de transplante, como para, em caso de não doadores, evitar a subsistência de pacientes já mortos, isto é, redução da distanásia e garantir ao paciente o direito ao diagnóstico de morte.
A ME não tem uma fisiopatologia bem definida, porém é sabido que o Sistema Nervoso Central sofreu danos irreversíveis por colapso da autorregulação da perfusão encefálica e da manutenção da pressão intracraniana. Inicialmente há um aumento da pressão intracraniana, que pode ser evidenciada clinicamente como a tríade de Cushing, caracterizada por bradicardia, hipertensão e alterações do ritmo respiratório. Também pode haver redução da resistência vascular pulmonar, que pode culminar em edema pulmonar. A instabilidade hemodinâmica se instala conforme a evolução dos danos encefálicos, o que evolui para choque neurogênico. Os controles vasomotores centrais são perdidos.
A determinação da morte encefálica é segmentada em três etapas: (1) fase preparatória, na qual se determina a causa da ME e busca-se afastar os possíveis diagnósticos diferenciais; (2) fase de exame, em que busca-se preparar o paciente para os exames e realizam-se os exames neurológicos clínico e complementar; (3) Fase documental. A partir do momento em que suspeita-se de ME é iniciado o Termo de Declaração de Morte Encefálica e seguem-se as etapas 1 e 2. Por Lei, o diagnóstico de ME inclui dois diagnósticos clínicos, em que um deve ser obrigatoriamente realizado por um neurologista ou neurocirurgião, e um gráfico, que podem ser alternados de acordo com o protocolo estabelecido pela Unidade ou pela Secretaria de Saúde, desde que entre a primeira e a segunda etapa ocorra um intervalo mínimo de 6 horas.
O exame neurológico clínico deve ser caracterizado por apneia, coma e total arreflexia do tronco cerebral. Como pré- requisito para iniciar o protocolo, deve-se ter a causa do coma identificada, coma irreversível, ausência de hipotermia, hipotensão, distúrbio metabólico grave, intoxicação exógena e efeito de medicamentos sedativos. O protocolo de ME não pode ser iniciado até que a causa do como seja indubitavelmente conhecida.
Durante todo o processo, a família deve estar ciente e tem total permissão legal de solicitar a presença de um médico de sua preferência durante todo o desenvolver do protocolo.
Causas reversíveis de coma devem ser afastada para que se estabeleça o diagnóstico de morte encefálica. A hipotermia e o uso de medicações são duas causas importantes que são destacadas. A hipotermia tem a destruição dos centros termorreguladores hipotalâmicos como ponto chave na sua gênese. Assim, para que se realize o diagnóstico de ME o paciente deve ser mantido em normotermia, sendo aquecido a uma temperatura aproximada de 35 ºC. Medicações tais como sedativos podem induzir um coma e ser fator de confusão para determinação do diagnóstico de ME, principalmente quando apresentam-se em doses séricas elevadas. Dessa maneira é necessário excluir a presença dessas medicações na circulação do paciente, para que se possa fazer uma avaliação adequada do estado de ME. Normalmente para se estabelecer a ausência da medicação na circulação, espera-se um período de cinco meias-vidas. Drogas comumente usadas como o fentanil, midazolan, propofol e dexmedetomidina apresentam tempo de meia-vida entre 2 e 4 horas, assim se espera cerca de 24 horas após a administração da última dose para que se inicie o protocolo. Também se deve atentar para os distúrbios hidroeletrolíticos, que podem ser causados pelo diabetes insipidus, conseqüência da própria ME. Nesse caso, tem-se deficiência na produção do hormônio antidiurético (ADH) por falência hipotalâmica. Clinicamente, o paciente apresenta-se com poliúria, hipernatremia, hipovolemia e densidade urinária próxima a 1 g/cm3.
O indivíduo com suspeita de ME deve ser ventilado com prótese mecânica durante toda a aplicação do protocolo, exceto durante a prova de apneia. A PaO2 deve girar por volta de 200 mmHg e a PaCO2 em torno de 35 mmHg. Por esse motivo, antes do início dos testes, deve-se pré-oxigenar o paciente, principalmente para reduzir complicações durante o teste da apneia.
Os reflexos supraespinhais, exclusivamente, devem estar ausentes no paciente com ME. Isto é, reflexos medulares presentes não afastam o diagnóstico de ME. Para iniciar, aplica-se a escala de Glasgow, que deve resultar num score de 3. Para testar a resposta álgica deve-se dar preferência a estímulos na face, visto que o estímulo no esterno se refere a reflexos medulares, que não excluem o diagnóstico de ME. A seguir, testa-se o reflexo fotomotor, corneopalpebral, oculocefálico, vestíbulo-ocular, reflexo da tosse e a prova da apneia. Reflexos tendinosos profundos também devem ser testados e devem estar ausentes.
A prova calórica deve ser realizada com a cabeceira elevada em 30º e a infusão de 50 mL de soro fisiológico a 0,9% a 0ºC através do meato acústico externo, de maneira lenta. Os olhos devem ser observados por dois minutos, e não pode haver qualquer movimentação ocular em casos de ME. A prova de apneia deve ser precedida de uma pré-oxigenação de pelo menos 10 minutos, com FiO2 a 100%. Ao desconectar o paciente do ventilador mecânico, deve-se instalar um cateter com O2 a 100% com fluxo de 6 L/min. Observa-se se haverá movimentos respiratórios nos próximos 10 minutos. A PaCO2 atingida durante esse período deve ser igual ou superior a 55 mmHg, confirmados por gasometria. Todos esses testes compreendem o primeiro exame clínico. O segundo exame deve ser realizado pelo menos seis horas após o primeiro.
Além do exame clínico, é necessária a realização de um exame complementar, que pode ser realizado entre os dois exames neurológicos clínicos ou após a realização de ambos, mas nunca precedê-los. Os exames complementares preconizados para auxiliar na avaliação do paciente com ME é a angiografia cerebral, tomografia SPECT, cintilografia isotópica, eletroencefalograma, Doppler transcraniano, tomografia por emissão de pósitrons e a tomografia computadorizada por xenônio. Qualquer um desses exames deve mostrar com veemência a ausência de atividade elétrica, atividade metabólica cerebral ou a ausência de circulação sanguínea encefálica.
Caso o paciente em ME seja um potencial doador de órgãos, busca-se a manutenção da integridade corporal até a realização da captação de órgãos. Os principais cuidados são pautados na instabilidade hemodinâmica, infecções, distúrbios hidroeletrolíticos e hipotermia. Infecções graves e doenças neoplásicas contra-indicam a doação de órgãos.
O Termo de Declaração de Morte Encefálica criado pela Resolução do CFM nº 1480 de 08/09/97 é de fácil preenchimento e autoexplicativo, facilitando seu preenchimento, mesmo por médicos desacostumados com o mesmo, sendo o principal desafio o reconhecimento da ME e do momento de iniciar o protocolo. Desse modo, o conhecimento dos protocolos de ME pelos estudantes durante a formação diminui esse tempo e a insegurança do futuro profissional diante desses casos delicados.
Referências
- Morato, Eric Grossi. "Morte encefálica: conceitos essenciais, diagnóstico e atualização." (2009): 227-236.
- Bitencourt, Almir Galvão Vieira, et al. "Avaliação do conhecimento de estudantes de medicina sobre morte encefálica." Revista Brasileira de Terapia Intensiva 19.2 (2010): 144-150.
- de Alencar Meneses, Elienai, et al. "Análise bioética do diagnóstico de morte encefálica e da doação de órgãos em hospital público de referência do Distrito Federal." Revista Bioética 18.2 (2010).
- G Bryan Young. Diagnosis of brain death. UpToDate. 2017. Disponível em: <http://www.uptodate.com/online>. Acesso em: 30/01/2017.
- Vilibor R. Morte encefálica. Medicina Intensiva – Abordagem Prática 2ª edição. São Paulo, Manole, 2015. p 425 – 434.
- http://www.transplante.rj.gov.br/site/Arq/morte_%20encefalica.pdf.